A guerra de trincheiras entre as redes de TV Globo e Record viveu mais uma batalha feroz, com ataques demolidores de parte a parte. As duas emissoras concorrentes se engalfinham desde terça-feira, quando a Globo abriu as hostilidades. Na noite deste domingo (16) os combates chegaram ao paroxismo, misturando de cambulhada religião, política e acusações contra a rival.
Por Bernardo JoffilyFoi um domingo de troca de acusações pesadas. Não o primeiro, sem dúvida, mas talvez o mais destemperado de um confronto que já se prolonga há anos na telinha.
O bispo se defende em entrevista
A Record levou ao ar um programa de uma hora, defendendo seu proprietário, o bispo Edir Macedo, da acusação de ser “chefe de uma quadrilha”. O programa da Record foi uma “resposta aos ataques”, segundo o apresentador Marcos Hummel. A Record está em campanha, com centro nos templos da Universal, pregando o boicote à Rede Globo.
O ponto central foi uma longa entrevista com o próprio bispo fundador da Igreja Universal, gravada nos Estados Unidos. Foi a primeira entrevista de Edir Macedo desde 2007 – em outro episódio de enfrentamento com a Globo.
A entrevista mostra Edir Macedo em plano fechado. Ele tira os óculos e pede ao telespectador que olhe nos seus olhos e “veja se há tristeza, angústia, desespero”. Cita Jesus. E destaca a afirmação “Ninguém chuta cachorro morto”.
O bispo se diz “intrigado” com os produtores do Ministério Público Federal de São Paulo, que o acusam de “chefe de quadrilha”. “Por que o Ministério Público estadual, por que não o Ministério Público Federal veio fazer esses… questionamentos?”
“Antes eles tinham medo que eu fosse candidato à Presidência da República e hoje eles têm medo que a Record se posicione em primeiro lugar”, disse o fundador da Universal e dono da Rede Record.
A Globo contraataca
A Globo contraatacou em seguida. Em dez minutos do Fantástico, repisou pelo sexto dia consecutivo as denúncias contra a Igreja Universal e seu fundador. Destacou denúncias de que o dinheiro arrecadado junto aos fiéis é desviado e mostrou ex-seguidores da Universal que disseram ter sido lesados.
O programa da Globo levou ao ar entrevistas com pessoas que disseram ter doado até R$ 100 mil para a igreja. A reportagem mostrou também uma casa em Campos do Jordão (SP) com doze suítes e elevador panorâmico avaliada em R$ 10 milhões, como propriedade da Universal e prova de seu caráter de “quadrilha”.
A reportagem cita constantemente o Ministério Público e pela Polícia Civil de São Paulo. Acusa as fraudes na Igreja Universal de datarem de pelo menos 10 anos, movimentarem R$ 1,4 bilhão por ano em dízimos coletados em 4,5 mil templos em 1,5 mil cidades do país.
Guerra, religião… e política
O uso de referências militares ajusta-se ao conflito por vários motivos, além do encarniçamento. É uma guerra de de posições, com cada facção entrincheirada em seus bunkers, submetendo o inimigo a um incessante bombardeio de saturação. Suja, lamacenta, penosa, lembra as cenas da 1ª Guerra Mundial, descritas por Erik Maria Remarke no clássico Nada de novo no front.
O confronto lembra também os casos clássicos, estudados desde Sun Tse, de um exército poderoso e estabelecido, que se depara com um inimigo em crescimento, que se vê desafiado por uma potência emergente. A Globo é o velho império, posto em xeque pelo atrevimento da Record.
A conotação religiosa da disputa é ostensivamente assumida pelos dois lados. A Globo abraça a causa do catolicismo, predominante desde sempre no país, mas em continuado declínio. Pinta a Igreja Universal como uma seita de fanáticos. A Record assume sem rodeios o vínculo com a Universal, exibe seus templos repletos de fiéis, praticantes e aguerridos.
Há ainda uma conexão política no conflito, que não aflora abertamente na polêmica mas fica clara no conjunto da programação das duas rivais. A Globo radicaliza o compromisso com a corrente midiática predominante, que fustiga sem cessar o governo Lula e trabalha pela vitória do PSDB na eleição presidencial de 2010. Mantém uma aliança com a mídia escrita, em especial O Estado de S. Paulo. A Record mantém uma aliança tácita com Lula e trabalha habilmente com a imensa popularidade presidencial. Abriga jornalistas dissidentes do pensamento único midiático, como Paulo Henrique Amorim e Luiz Carlos Azenha.
Efeitos pedagógicos
O fato é que nesta semana o enfrentamento fugiu do controle. Dois lados não há trégua, quartel ou limite. A imagem tradicional, como espaço de cândido entretenimento, fica consideravelmente arranhada. Até para o telespectador mais desatento revela-se a face de outra TV, interesseira e manipuladora.
De alguma forma, penosa e malcheirosa, essa revelação deve estar produzindo efeitos pedagógicos na multidão dos telespectadores brasileiros. O mais hipnotizante dos meios de comunicação, de repente, expõe em público ao menos uma parte dos seus bastidores.
É como se dois mágicos, prestidigitadores de múltiplos recursos, subitamente se pusessem a delatar, no palco, os truques um do outro. Quebra-se a magia, desmorona o glamour. A platéia, atônita, descobre o que antes lhe ocultavam. Enquanto entretenimento, o espetáculo já não é talvez tão divertido. Mas enquanto aprendizado, ensina um bocado.